Tráfico x milícia: por que a guerra de facções no Rio piorou desde janeiro e quem é quem no conflito

Violência escalou a partir da segunda quinzena de janeiro. O g1 explica os interesses dos criminosos e como a guerra impacta a população. Mapa
Desde meados de janeiro, diferentes grupos criminosos que agem na Região Metropolitana do Rio acirraram uma já violenta disputa por territórios.
A busca pelo controle de comunidades do RJ entre traficantes e milicianos sempre houve, mas o crescimento dos confrontos das últimas semanas tem mobilizado as forças de segurança.
No último dia 23, uma operação em São Gonçalo para conter essas invasões, entre outros objetivos, terminou com 13 criminosos mortos. Na quinta (30), houve outra grande operação, na Vila Cruzeiro, com um traficante morto.
Em resumo, o Comando Vermelho está atacando rivais, principalmente milicianos, para ampliar seus domínios — e tem conseguido (entenda abaixo como é a divisão do crime organizado no RJ).
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Armas foram encontradas pela polícia dentro de tonel enterrado na Vila Cruzeiro
Divulgação
A guerra tem efeitos dramáticos sobre a população, que quase diariamente se vê na linha de tiro. Também se reflete na crescente apreensão de armamentos — em 2023, três fuzis são retirados por dia das mãos de bandidos, como o g1 mostrou – e na piora dos índices de segurança.
O g1 explica, a partir de agora, quem está envolvido, o que desencadeou os recentes conflitos, os interesses dos criminosos e o que aconteceu nas últimas semanas.
Você vai encontrar nesta reportagem:
Os vários lados de uma guerra
Onde são os núcleos conflagrados
O que detonou os confrontos de 2023
Detalhes da disputa na Grande Barra da Tijuca
Os embates na Grande Jacarepaguá
Os confrontos na Grande Penha
A briga na Baixada Fluminense
Apêndice: crime organizado — origens, diferenças e semelhanças
Os vários lados de uma guerra
Polícia apreendeu 13 fuzis e 1 pistola na operação em São Gonçalo
Leslie Leitão/TV Globo
O crime organizado no RJ está dividido entre tráfico e milícias. Segundo o Mapa Histórico dos Grupos Armados no Rio de Janeiro, um estudo do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni/UFF), os maiores são:
Comando Vermelho (CV). Mais poderosa facção do tráfico do RJ, com ramificações pelo Brasil, domina vastas áreas nas zonas Sul e Norte — como a Rocinha, o Complexo do Alemão e a Cidade de Deus. Sob seu jugo estavam 2 milhões de fluminenses, segundo o Geni/UFF, com dados de 2022.
Terceiro Comando Puro (TCP). Dissidência do extinto Terceiro Comando — de oposição ao CV —, tornou-se o segundo maior grupo de traficantes do RJ, diz o Geni/UFF. Entre as maiores bases estão o Complexo de Israel, em Cordovil, e o Complexo da Maré. Há uma parceria com a milícia justamente para tentar fazer frente ao CV.
Amigos dos Amigos (ADA). Facção do tráfico em declínio, atualmente não está envolvida em disputas.
Milícias. Ao contrário do CV, do TCP e da ADA, não têm uma chefia unificada, mas se multiplicaram e, no mapa do Geni/UFF, ultrapassaram as facções do tráfico, somadas, em área territorial: 256 km² — onde vive 1,7 milhão de pessoas. Cada região tem sua cúpula, mas há um pacto de não agressão entre as milícias. A maior delas é a derivada da Liga da Justiça, que manda em boa parte da Zona Oeste do Rio e da Baixada Fluminense.
Veja mais abaixo a origem de cada grupo.
Núcleos conflagrados
Há cinco regiões em conflito atualmente.
Grande Barra da Tijuca: Comando Vermelho x Milícias + Terceiro Comando Puro
Grande Jacarepaguá: Comando Vermelho x Milícias
Grande Penha: Comando Vermelho x Terceiro Comando Puro
Baixada Fluminense — são duas áreas: Km 32 (Nova Iguaçu), entre Comando Vermelho e Milícias, e o Morro da Torre (Queimados), com Comando Vermelho e Terceiro Comando Puro.
À exceção dos confrontos de Água Santa, Campinho, Quintino e Praça Seca, que se arrastam há pelo menos cinco anos, todos começaram na virada do ano — e, quatro meses depois, não dão sinal de término.
O que detonou os confrontos de 2023?
Dois fatos sem aparente conexão entre si deflagraram os conflitos:
A morte do miliciano Pokémon;
O aniversário do traficante Doca.
A MORTE DE POKÉMON
Rodrigo Dias, o Pokémon, foi morto após trocar tiros com policiais militares em 21 de janeiro. Pokémon era chefe da milícia de Rio das Pedras e da Muzema, no lugar de Queiroz e Maurição, que foram presos.
Segundo a PM, Pokémon estava na garupa de uma moto que não obedeceu a uma ordem de parada. Houve perseguição, e o miliciano atirou contra os militares, que revidaram e o atingiram.
ANIVERSÁRIO DO DOCA
Em 25 de janeiro, Edgar Alves de Andrade, o Doca, um dos chefões do Comando Vermelho, completou 53 anos e pediu como “presente de aniversário” a conquista de comunidades, de preferência da milícia.
Doca é responsável pelo Complexo da Penha, um dos maiores núcleos do CV.
Com a morte de Pokémon e a ordem de Doca, o Comando Vermelho decidiu atacar a região de Jacarepaguá, apostando num enfraquecimento dos paramilitares.
O g1 passa a detalhar os conflitos por região.
1. Grande Barra da Tijuca
Facções em guerra: Comando Vermelho x Milícias + Terceiro Comando Puro
Localidades afetadas: Anil (Tirol), Barra da Tijuca (Muzema e Tijuquinha), Jacarepaguá (Cidade de Deus) e Gardênia Azul.
Segundo as investigações, o CV atacou comunidades periféricas de Rio das Pedras, ainda uma base da milícia, e conseguiu tomar a Gardênia Azul, a Muzema, a Tijuquinha e parte do Anil.
Só o Anil, na Favela da Tirol, teve pelo menos 12 assassinatos em menos de um mês. Uma das execuções foi até filmada pela quadrilha. A ação durou 15 segundos.
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Moradores da Cidade de Deus atearam fogo em barricadas
Reprodução / TV Globo
A Cidade de Deus, reduto do CV há décadas, é a base para os ataques. No último dia 15, a PM entrou na favela, com rasantes de helicóptero e bombas de gás lacrimogêneo. Foram 3 mortos, 26 presos e 8 fuzis, 13 pistolas e mais de 100 quilos de drogas apreendidos.
Parte dos presos quase conseguiu fugir em um caminhão, mas a polícia interceptou o veículo na Autoestrada Grajaú-Jacarepaguá e encontrou 15 homens no baú.
O tráfico já se impõe aos habitantes da região. Um vendedor de galões de água foi morto no dia 22. A polícia investiga se a execução de Ironaldo Salvador de Alcântara foi uma represália porque o comerciante se negou a passar a comprar do fornecedor indicado pelo CV.
Os parentes acreditam que ele foi usado como “exemplo” do que pode acontecer se um comerciante hesitar em cumprir as ordens da quadrilha.
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Reprodução/ TV Globo
“Estamos sendo obrigados a comprar água com um revendedor específico de água por conta do tráfico que invadiu a Gardênia Azul. Todos os outros fornecedores foram proibidos de entrar na Gardênia com outra água”, disse um homem.
“Está difícil. Aqui já foi muito bom de morar. Agora, o perigo permanece”, contou outro morador.
O Terceiro Comando Puro, a fim de evitar que o principal rival amplie ainda mais os domínios, está cedendo homens e armas para a milícia. O reforço vem da Serrinha e da Maré.
2. Grande Jacarepaguá
Facções em guerra: Comando Vermelho x Milícias
Localidades afetadas: Água Santa (Morro do Dezoito), Campinho (Bica e Fubá), Praça Seca (Barão, Baronesa, Chácara Flora, Chacrinha e São José Operário), Quintino (Saçu), Tanque (Covanca) e Taquara (Jordão).
Todas essas comunidades circundam o mesmo maciço, a parte noroeste do Parque Nacional da Tijuca, por cujas trilhas na mata criminosos articulam as investidas.
De acordo com as investigações, o Comando Vermelho tomou da milícia todas essas comunidades. Paramilitares tentam reconquistar territórios e focam os contra-ataques em Água Santa e na Praça Seca.
Essa guerra é antiga: os primeiros confrontos datam da Olimpíada, em 2016, e se tornaram mais frequentes de cinco anos para cá.
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No dia 21, ônibus foram atravessados como barricadas e incendiados na Rua Clarimundo de Melo, a principal de Quintino. Foi uma represália do tráfico à morte de dois suspeitos em confronto — um deles era Ryan Cordeiro de Assis, conhecido como Morte ou Açougueiro.
“O próprio nome diz como ele é macabro. Ele era responsável por esquartejamento e o sumiço de corpos”, disse o delegado André Neves.
No início do mês, outra manifestação, depois que um mototaxista foi baleado e morto. Segundo relatos, ele teria envolvimento com milicianos, fazendo o transporte deles durante cobranças na região.
Em setembro do ano passado, o Campinho teve uma semana de intensos embates. Criminosos chegaram a invadir o antigo Tribunal de Justiça, e crianças tiveram de se abrigar na Pastoral do Menor para escapar das balas.
Traficantes mandam atravessar ônibus em rua para atrapalhar a polícia
JN
3. Grande Penha
Facções em guerra: Comando Vermelho x Terceiro Comando Puro
Localidades afetadas: Brás de Pina (Cinco Bocas, Guaporé, Quitungo), Cordovil (Cidade Alta e Pica-pau), Parada de Lucas, Penha Circular e Vigário Geral.
O CV começou a atacar o QG do TCP, o Complexo de Israel, e já tomou as favelas vizinhas do Quitungo e de Guaporé — que não chegaram a ser totalmente dominadas pelos rivais.
Semana passada, um ônibus ficou na linha de tiro durante um confronto na junção das ruas Ourique e Pindaí, em Brás de Pina.
Pelo menos seis disparos atingiram o para-brisa. Segundo testemunhas, um dos bandidos ainda buscou abrigo atrás da porta do coletivo. Apavorados, passageiros se jogaram no chão para se proteger.
ônibus é atingido por tiros no Rio
Reprodução/TV Globo
Há 15 dias, a Delegacia de Roubos e Furtos de Cargas encontrou na Cidade Alta uma garagem onde veículos roubados eram adesivados para que parecessem com viaturas da polícia.
Com essa frota camuflada, bandidos acreditavam passar despercebidos e transportar pela cidade os traficantes que dariam apoio aos conflitos no Morro do Fubá, no Campinho e na Praça Seca.
Pelo menos 15 automóveis roubados foram encontrados.
4. Baixada Fluminense
Facções em guerra: num confronto, Comando Vermelho x Milícias; em outro, CV x TCP.
Localidades afetadas: Nova Iguaçu (Km 32) e Queimados (São Simão e Torre).
Em Nova Iguaçu, o tráfico começou a investir contra as localidades às margens da antiga Rio-São Paulo, como o Km 32, reduto de milicianos.
Em Queimados, a linha do trem separa o Comando Vermelho do Terceiro Comando Puro. Ataques do CV partem de São Simão, de um lado, com o objetivo de tomar o Morro da Torre, do outro.
Apêndice: crime organizado — origens, diferenças e semelhanças
TRÁFICO
O tráfico começou a se estruturar no Rio de Janeiro a partir do final da década de 1970, expandiu-se nos anos 80 e passou a travar disputas entre si nos anos 90.
Há 50 anos, a cidade virou um ponto na rota de distribuição da cocaína para a Europa. Na mesma época, surgiram, dentro de presídios, as facções criminosas. Um grupo de detentos comuns se uniu a presos políticos para combater um bando que dominava as cadeias e que chegava a cobrar pedágio pela “segurança” nas celas.
Os assaltantes comuns aprenderam as técnicas de organização e guerrilha dos militantes políticos e descobriram que as drogas eram mais lucrativas que assaltos.
MILÍCIAS
As milícias surgiram na década de 1960, mas se proliferaram nos anos 2000. Policiais e ex-policiais corruptos passaram a “oferecer segurança” nas comunidades sob o pretexto de “resguardar” os moradores do tráfico, a quem se opunham com muita violência.
A “taxa de proteção” era apenas uma forma de exploração. Paramilitares passaram a impor o monopólio de serviços de internet clandestina e de distribuição de água e de gás, sobre os quais incidem ágio. Motoristas de vans também foram obrigados a pagar pedágios.
DIFERENÇAS E SEMELHANÇAS
Milícias originalmente rechaçavam o comércio de entorpecentes em suas áreas, mas hoje já existem narcomilícias (entenda abaixo).
O tráfico, por sua vez, adotou o modelo de exploração dos paramilitares, com as taxas e os monopólios.

02/04/2023 08:00

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